
Convidamos vocês a fazer parte da construção de um novo sonho de justiça social, tecido por nosso povo, sempre insubmisso e rebelde, ainda que por vezes pareça calmo.
Lxs Comunes, janeiro de 2025
Prezados companheiros latino-americanos e do mundo que nos visitam, sejam bem-vindos desde as comunidades, as veredas, os campos, as estradas, as fábricas e as universidades, lugares que não são visitados por aqueles que destruíram o sonho de uma revolução democrática e popular. Gostaríamos de recebê-los em nossas comunidades para constatarem a realidade que não é a oficial. Queremos dialogar com vocês sobre os seguintes aspectos:
TRABALHO
A situação material de vida da classe trabalhadora: nós, que vivemos do trabalho, sobrevivemos há quase uma década com os menores salários do mundo e a absoluta perda dos direitos conquistados no século XX. O conceito de salário foi destruído, enquanto nossos filhos, irmãos, pais e familiares precisam migrar para não morrer de fome. Isso contrasta com o estilo de vida e consumo da elite política governante, confirmado pelo desinteresse que as embaixadas do país mostram pela situação daqueles que vivem nos territórios de onde vocês vêm. Esse mesmo governo, com uma elite política que fala de socialismo, organiza diariamente jantares luxuosos em hotéis, restaurantes e no Palácio do Governo, enquanto milhares de crianças dormem sem nada no estômago. Falam de recuperação econômica, mas os salários continuam caindo. Para onde vai o crescimento econômico? Qual economia está crescendo? Certamente não é a do povo trabalhador.
POLÍTICA
As liberdades políticas do povo trabalhador enfrentam uma situação dramática: o direito à greve e à mobilização foi confiscado na Venezuela. Não existe nenhuma possibilidade de que uma reivindicação trabalhista seja interpretada como tal. Os trabalhadores não podem protestar como fazem em seus países, pois são acusados de conspiradores ou traidores. Vocês achariam aceitável que isso acontecesse em seus países? Temos dezenas de líderes sindicais processados, perseguidos ou presos apenas por pedirem aumento salarial. Pior ainda, o simples ato de pensar a partir da rebeldia dos de baixo e expressar isso publicamente incomoda os burocratas e os novos ricos, que transformam isso em delito.
DEMOCRACIA
Sem esquerda, não há democracia: a esquerda não existe organicamente dentro do PSUV – nem em sua direção política, intelectual, nem em sua militância territorial. Aqueles comprometidos com o projeto de soberania e poder popular desenhado por Chávez são invalidados pelos sectarismos que defendem a imposição do consenso neoliberal. Todos os partidos de esquerda que acompanharam Chávez estão hoje sob controle judicial, intervencionados e suas legítimas direções políticas foram despojadas de representação jurídica. Impostores, colocados arbitrariamente pelos órgãos de poder, pagam com sua submissão a possibilidade de saquear organizações políticas com décadas de tradição de luta. Criticar, algo que em seus países é comum, na Venezuela leva à imediata intervenção das organizações políticas. Ainda assim, a esquerda segue organizada nos territórios, nutrindo os sonhos de um futuro melhor e construindo esperanças. Para o governo, a política se resume à obediência às suas decisões. O pensamento político rebelde de Chávez ficou restrito a slogans e ao uso “oficial” de seus atos partidários, despojando Chávez de seu caráter popular e rebelde.
FASCISMO
Sempre que há tensões políticas no país, a direita lidera surtos de ódio e violência fascista. Certamente, o fascismo de direita tem crescido na Venezuela, tanto aquele oriundo dos antigos partidos conservadores e social-democratas, agora ferozmente antissocialistas, quanto aquele presente no PSUV, que adotou o pós-socialismo neoliberal como ideologia. Essa situação criou uma rota para um consenso que ameaça se transformar em um novo Pacto Social (entre o governo e a oposição), que ataca as liberdades democráticas e os direitos conquistados pela classe trabalhadora e pelo povo humilde. Na Venezuela, está sendo incubado um neofascismo cujos «parteiros» são o governo, o PSUV e a oposição extremista de direita. O elemento inédito dessa dinâmica é que o governo dissimula isso sob um discurso antifascista vazio de qualquer expressão concreta na realidade venezuelana. Se não, perguntem-se: por que, na Venezuela, não avançam os direitos ao aborto, ao casamento igualitário, à legalização da maconha, ao direito de greve, e por que os direitos conquistados pelos trabalhadores continuam sendo violados, enquanto se instala o medo de discordar? Por que, após os acontecimentos de 28 de junho (28J), dezenas de adolescentes foram detidos e por que tanto o governo quanto a oposição de direita os abandonaram? O discurso antifascista serve como uma farsa que mascara o autoritarismo neoliberal: o protesto social posterior ao 28J – majoritariamente popular e pacífico (com elementos marginais de violência fascista) – foi eficientemente controlado por meio de judicialização e repressão estatal-parapolicial. Para além do conflito político-eleitoral, a continuidade do modelo econômico de exploração e espoliação, junto com a defesa dos interesses do capital, exige o aperfeiçoamento de dispositivos jurídico-políticos e ideológicos para controlar o conflito social e a luta de classes. Hoje, as leis e propostas de lei – contra o bloqueio, contra o ódio, antifascistas, de regulamentação de organizações não governamentais e eleitorais – estão voltadas para fortalecer esse aparato de dominação, sob a justificativa de combater a ameaça fascista.
GEOPOLÍTICA
O anti-imperialismo é celebrado com a Chevron: culpam as sanções pela degradação social, mas o deterioro começou antes delas e foi aprofundado por elas. O aumento da exploração de petróleo nos últimos anos é feita para abastecer de energia os gringos que dizem combater, enquanto lhes permitem explorar o petróleo sem pagar um centavo à nação. Nunca na Venezuela, desde o início do século XX, entregamos o petróleo em condições tão neocoloniais, enquanto esses lucros não melhoram a vida cotidiana do povo. O anti-imperialismo declarativo é apenas um slogan usado como identidade pelos novos-ricos da Venezuela.
NEOLIBERALISMO
Como se constitui a burguesia na Venezuela: na Venezuela, a burguesia se formou em torno da captura da renda petrolífera, das vantagens no mercado cambial, das licenças de importação e das isenções de tarifas aduaneiras e impostos. Ter o poder político é o obstáculo a ser superado para se enriquecer. Por isso, a direita retrógrada e o madurismo lutam ferozmente pelo controle do governo, pois ambos os setores fazem parte da velha e da nova burguesia. Não existe um modelo produtivo revolucionário ou em resistência, há um saque de recursos naturais e uma liberalização da economia.
TERRA
As terras que Chávez deu aos camponeses hoje voltam às mãos dos latifundiários: o ideal de Zamora (líder camponês histórico venezuelano) de terras para quem as trabalha, defendido por Chávez, hoje é uma caricatura, pois o que foi concedido com justiça no passado agora lhes é arrancado. Os antigos donos das terras se sentem ouvidos e atendidos pelo governo de Maduro. Para piorar, nos últimos anos foram entregues 12 milhões de hectares ao agronegócio internacional, o que o governo chamou de Zona Econômica Agrícola do Oriente.
PRODUÇÃO
Adeus às fábricas recuperadas: o governo de Maduro acabou de entregar 350 empresas públicas à burguesia agrupada na associação “Conindustria”, tentando fechar acordos com todas as frações burguesas, enquanto os trabalhadores dessas empresas ainda não receberam suas rescisões e benefícios sociais. É a Pax dos ricos e os acordos dos sem vergonha.
BOLIVARIANISMO
A democracia no terreno do Bolivarianismo: em 1996, Chávez nos convocou a construir uma revolução com a arma política da democracia. Milhões de venezuelanos não só o acompanhamos, como também construímos formas avançadas de participação. Hoje, a democracia se resume apenas a eleições, cujos resultados são ajustados aos desejos e necessidades de quem governa. O processo eleitoral de 28 de julho, no qual participaram milhões de venezuelanos, terminou sendo uma caricatura ao colocar o Conselho Nacional Eleitoral à margem da Lei e da tradição eleitoral venezuelana, violando o sufrágio e a vontade popular. Meses após a eleição de 28 de julho, o povo ainda não dispõe de mecanismos para verificar se sua vontade foi respeitada. A democracia não é uma questão de fé, mas um exercício verificável e auditável pelos cidadãos. Sem democracia política, a única coisa que pode acontecer é um maior deterioramento das possibilidades da classe trabalhadora de ter sua própria voz.
CHÁVEZ
O projeto de Chávez foi traído: construiu-se um novo Chávez, à medida de quem ostenta o poder, uma caricatura revolucionária, enquanto nas ruas o povo continua reivindicando o Chávez do “por agora” de 1992, aquele que ressurgirá quando as resistências contra a traição madurista ao projeto revolucionário bolivariano se reconstituírem. Chávez foi traído e o povo sabe disso.
REFORMA CONSTITUCIONAL
Em 1999, os venezuelanos criamos uma Constituição a serviço de uma pátria de justiça social. Todo o projeto de transformação radical da sociedade venezuelana está contido na Carta Magna que elaboramos e aprovamos em referendo, no período de ascensão do protagonismo popular. Tentar reformá-la quando as ideias neoliberais e autoritárias tentam se impor, só pode significar um retrocesso em nosso marco jurídico. Com Chávez, dissemos: dentro da Constituição, tudo; fora dela, nada.
ORGANIZAR
Parafraseando o escritor guarani Tadeo Zarratea, dizemos: «Não queremos mudar o comissário nem o juiz. Isso não vai servir para nada. O que nos oprime é a nossa realidade, e é essa que queremos mudar. Nos organizamos justamente para mudar a nossa realidade. Pedimos que entendam que o povo não está no palácio do governo».
ACOMPANHAR
Nos interessa encontrarmos com o movimento popular e com as esquerdas que lutam sempre: queremos dialogar com vocês a partir da lógica do povo que se organiza e resiste. Sabemos que vocês vivem e acompanham as lutas dos seus povos, e hoje pedimos que acompanhem as lutas do povo venezuelano, e não a sobrevivência de quem se aproveita do poder em nome do povo.
Para finalizar, deixamos uma breve reflexão:Na Venezuela, coexistiram nos últimos 25 anos dois processos simultâneos: uma revolução e um governo. Durante muitos anos, a revolução, composta por movimentos sociais, sindicais, organizações e partidos políticos, esteve sob a liderança de Hugo Chávez, e alcançou momentos épicos na construção de um modelo social transformador, impulsionando a produção, o trabalho, a organização, a rebeldia, a redistribuição justa da riqueza e mantendo uma constante tensão com o imperialismo e as burguesias apátridas. Com Chávez, alcançamos o governo, e esse foi fundamental na aceleração das conquistas da revolução. Desde o Governo, com Chávez à frente, avançamos em uma direção política revolucionária e popular. No entanto, nos últimos 10 anos, a revolução bolivariana foi perdendo protagonismo e não está mais refletida nas políticas do governo atual. Os resultados estão à vista, e neste documento abordamos alguns deles, com os quais gostaríamos de dialogar com vocês. Não se confundam, não acreditem que ao apoiar o governo estão apoiando a Revolução Bolivariana.
Convidamos vocês a fazerem parte da construção de outro sonho de justiça social que nosso povo tece, sempre insubmisso e rebelde, embora às vezes pareça calmo.
Lxs Comunes, janeiro de 2025